domingo, 16 de março de 2008

Noites de piqueniques e madrugadas de espaguete


Para preservar a identidade de meu amigo, vou chamá-lo de Nário Louis.
Éramos vizinhos de janela. Predinho estranho aquele, com ares de casa de repouso para senhoras excêntricas, se não fosse por uma meia dúzia, mais jovem, mas igualmente excêntrica. Nário e Eu conversamos pela janela e achávamos que ninguém ouvia.
Acho que era um tipo de alucinação causada pelo estoque de vinhos portugueses que arrematávamos semanalmente, até que os donos do mercado resolveram corrigir o preço (mas muito segredo já havia sido contado e muito sinal da cruz já havia sido feito pelas nossas ouvintes).
Tínhamos noites de piqueniques e vídeo. Nário estendia toalha xadrez sobre a cama, pois que no chão, não cabia. Traíamos os portugueses com as loiras geladas, que acompanhavam melhor os cachorros-quentes com duas salsichas e muita mostarda. Cada detalhe era cuidado por Nário, coisas feias não eram postas sobre a sagrada toalha, nada de descartáveis. Para garantir um toque campestre, comprou um grilo mecânico. Uma caixinha chinesa infernal. Depois de dois minutos você já implorava por um inseticida ou se postava no meio na casa com chinelos na mão e ar de caçador, mesmo sabendo que não era de verdade. Menos Nário... que chegava a fechar os olhos com expressão iluminada. Uma vez ele surtou por dias: crim, crim, crim, crim. Nem dei as caras... Será que essa era a intenção?
Quando escolhíamos os filmes, ele sempre queria rever um triste e eu vetava. Afinal, eu choro até em desenho do pica-pau e quanto mais triste o filme, mais feio eu choro: aquele choro de cara torta, que dói a garganta de ficar segurando, e quando vem à tona, reboca outros choros contidos e aí é um horror: uááá, ranho escorrendo e depois a encarnação de "Rudolph", a rena do nariz vermelho! Pensando bem, talvez meu choro fosse a atração do piquenique... Mas, a mente ardilosa de Nário era páreo duro. O filho da mãe enchia os copos, colocava o filme depois da abertura e eu só percebia que estava vendo o “Regresso a Bountiful” na cena em que a velhinha fugitiva delicia-se com migalhas de seu lanchinho.
Teve uma época que só fazíamos macarrão alho e óleo, com muito alho! Muito mesmo!
Chegávamos de madrugada, rindo pelas escadas, e a festa continuava: velas, música baixinha, gargalhadas nem tanto. Enquanto a água do espaguete borbulhava, um morrinho de alho picado se formava.
_ Que você acha, tá bom?
_ Faz do seu jeito!
E o meu jeito? Ah! “No prazer sou superlativa”* , e acrescentava mais alguns dentes.
Pratos fumegantes e mais brindes. E o melhor do tudo: minha cama estava só a uns vinte passos! Belos, adormecíamos, exalando vapores tóxicos até a estratosfera; que certamente afastaram vampiros e alguns amores.
Às vezes, fazíamos festas sem comida; mas nunca, comida sem festa.
Que venha à pieguice, mas alegria é realmente o melhor tempero!

* não sei se essa frase é de alguém, se não for é minha.

quarta-feira, 12 de março de 2008

jabuticabas ressonantes

Nas últimas semanas, alguns dias desandaram, algumas horas embatumaram. Faltaram ingredientes, e os disponíveis não apeteciam. Afinal meu paladar sumiu! Isso não é recurso literário, mas sim, sintoma de investigação médica.
Paladar e parte do tato. Sutil, suave e morno, deixaram de existir. Crocante virou concreto triturado. Aos sabores mais fortes restavam a adivinhação, se eu estivesse no restaurante escuro descrito no blog sopa vermelha, comeria papelão sem me dar conta, afinal comia com os olhos. Tentava ressuscitar a memória gustativa soterrada em arquivos moribundos. Então a busca pelo sabor perdido foi afoita, desesperada e calórica:
_ Quem sabe um sorvete de coco com abóbora restabeleça a ordem?
_ Três é um número mágico, quem sabe no terceiro prato de arroz com feijão, a coisa toda se resolva...
Sem contar a pimenta cozinhando a mucosa, e nada!
Foi um festival de rasgar pacotes, abrir armários, sem contar o vinho que apesar da cor, foi o reverso do milagre: quase água; sacrilégio!
Picadas aqui, choques acolá e o medo de tornar-me íntima do pessoal da enfermagem.
A minha veia trágica instigada pela falta de tato do médico em revelar suas suspeitas, contribuíram para esse minha nova verdade: nascemos sozinhos, morremos sozinhos e entramos no tubo de ressonância magnética sozinhos! Logo eu, claustrofóbica! Tentei de tudo para me acalmar e nada. Patético: uma mulherona segurando uma campainha de borracha, que bem que poderia ser um patinho alegre e colorido, ao invés daquela coisa feia e preta, impregnada de digitais e desespero. Imaginei todas as tragédias que poderiam acontecer-me: ser esquecida enquanto o técnico saía para lanchar, os sons serem do alarme de incêndio, a máquina desregular e fritar-me como um salsichão, desmaiar e não conseguir apertar a campainha . Sem contar o ar que não bastava, não bastava. Rezei, mas... Lembrei-me do filme “O exorcista” onde a possuída faz uma série de exames em máquinas assustadoras. Também me lembrei dos relatos dos abduzidos a cerca das experiências extraterrestres. Jurava que era um ser cabeçudo que estava por trás do vidro, a dizer-me : _ vamos ter que interromper, fique quieta, não engula, não se mexa.
E eis que no meio da paranóia, uma benção adocicada se fez presente: jabuticaba. Foram desfilando na minha mente, casquinhas finas rompendo-se, pretinhas , expondo viscosidade branca e veiozinhos arroxeados. As pequeninas de sabor concentrado e também as grandonas, que compensam o pouco sabor, pela explosão na boca.
As danadinhas pipocando pelos troncos, agarradas quando verdes e despencando como colagem escolar quando maduras.
O ar faltava e dá-lhe mantra: ja-bu-ti-ca-ba, imagens de bacias repletas de bolinhas, sem casca, os caroços deslizando entre os dedos. Minha palma levando concha cheia para o céu da boca.
Saí já noite escura como casca, procurando-a nas banquinhas , mas já tinham ido dormir.
Sai o diagnóstico assustador e entra o novo: alergia rara.
O tato voltou assim como o paladar. A jabuticaba ficou para sempre e urgente, mas cadê? Não é época! Continuam ressonando:
“o olha a preta colada no tronco
Que mão do moleque
Arranca no toque...
O que bate na boca
Que a jabuticaba faz
Ploquet, pluft, nhoque
Faz ploquet, pluft, nhoque” (trilha do sítio do pica-pau-amarelo)
Alguém tem um pezinho com safra temporã?