quinta-feira, 3 de abril de 2008

TERTULIANA E AS MANGAS

As brecadas dos ônibus deram-lhe bom dia. Não, não era bom dia, mas sim um aviso:
_ Corra atrás da hora, você a perdeu!
Mas foi lesma que deslizou até o banheiro. Amarrou os cabelos sem penteá-los: ninho feito de longos fios elétricos.
Esfregou com força os dentes, que já não eram lá tão branquinhos; arrancando culpa e tártaro.
Desejou então a camisa verde, que no cesto sonhava com ferro quente a alisar-lhe as rugas.
Pensou no trabalho que a esperava: tanta preguiça; e no que gostaria de ter: tão atrasada. Alisou a camisa sem calor, com mãos molhadas.
Queria mesmo quintal e laranjeira, dar trégua às coisas, mormaçando o dia, chupando, chupando os frutos... Mas lembrou-se que era mentirosa, não gostava de laranjas. Buscou verdades. Onde? No paladar, que não mente. Estalou os lábios com ruído, mas foi o aroma quem respondeu. O cheiro das mangas amadurecia na fruteira de vidro...
Amava mangas. A verdade sob várias formas: pequenas e fiapentas, carnudas, suculentas, grandes também, algumas berrando tons de amarelo, outras sussurando verde e rosa.
Despejou-as na sacola de palha e lá se foi para o escritório.
Por quê Tertuliana, que até então era o remanso das coisas ordenadas ? Indagavam encolhidos pessoas e relatórios, diante da aparição de camisa amassada, sem calças e com mangas.
Enfeitou mesa e computador com as frutas. Entre uma chupada e outra, limpava os dedos com lenços perfumados, e digitava placidamente um novo contrato.
Decidiram chamar o Doutor Nelson, com larga experiência em dependentes químicos. Ele buscou em vão sinais de drogas, apenas olhos injetados de esperança.
_ Vamos, Tertuliana, vamos conversar lá no ambulatório. Eu quero te ajudar.
_ Então, traga-me uma faca...
O silêncio em sacas de concreto, desabou.
Afastou macio as manguinhas filhotes que dormiam no telefone.
_ Dona Aparecida ? É a Tertuliana. A senhora pode me trazer uma faca bem afiada, rápido ? Obrigada.
Sem trocar palavra, dois correram para a copa - impedindo que a obstinada Cida, cumprisse a sua obrigação. O telefone, alheio a tudo e adestrado pela inconveniência, tocava. Ninguém ousava.
_ Vamos, Tetê - implorou a recepcionista maternalmente, apesar da adolescência de suas espinhas. _ Você precisa descansar...
Tertuliana, decidida como mármore:
_ Cadê a faca que eu pedi ?
Doutor Nelson tentou se aproximar.
_ Não ouse me interromper ! - já com o punhal de cartas nas mãos.
_ A culpa é do desgraçado do Seu Tobias, peste. Ninguém agüenta tanta pressão.
_ Vem, querida, você está cansada. - soluçava Dona Odete, balançando os seios frouxos por debaixo do vestido florido.
Com o punhal cortou as carnes - pingando o sumo de coração-de-boi, doce.
Continuaria gostando das fiapentas, mas queria experimentar todas as outras. Não era infiel, não... Só não tinha mais culpa e nem pressa. Era a primeira vez que não se sentia atrasada.
Mordeu com sensualidade de felação o grande naco da fruta descoberta. As outras mangas, como não eram mesquinhas, não se sentiram traídas. Só as pessoas.