sábado, 28 de junho de 2008

Farofa ou Um minuto de sereia

A farofa foi preparada com esmero, assim achava a sogra. A farofa foi preparada com pirraça, assim jurava a nora. A farofa foi feita pela mãe e isso bastava ao filho. A primeira bem que podia ter esquecido as moelazinhas, afinal, nem gostava tanto delas assim. Às vezes, carregava nas cebolas picadinhas, toucinho e moelas nem eram cogitadas. Bem que ela viu na feira ontem mesmo, bananas da terra lindas em sua feiúra de casca escurecida. Viu e desviu imediatamente, afinal a imagem da nora dizendo: _ "eu adooooro farofa de banana da terra!", foi concatenada imediatamente com a aversão da nora por miúdos . E ligeira o quanto seus joelhos desgastados permitiam, foi logo pedindo na barraca do frango, meio quilo de moelazinhas.
_ Custa você comer só um tantinho? Intimou o filho da mãe e marido da mulher que odiava moelas, correndo para o mar.
A maldade na velha era puro êxtase, o filho em sua defesa e a moela alí, na boca daquelazinha, plantada como uma praga, causando-lhe náuseas e derrota, era uma benção!
Com os pés em ancinho na areia a mulher constatou: tinha 30 varizes e muitos anos.
As veias inchadas de estouro rubro.
Traição: o sol não veio. Veias e paciência em ebulição, estouradas. A loucura tomou posse: a mulher achou que tinha 30 coisas e nenhuma varize, achou que sua barriga era menor que a mesquinhez daquele humano de short xadrez e frouxo que rolava no sal das águas.
A louca que agora era mulher rugiu:
_ Filho da puta, odeio você!
A sogra despejada entre as listras da cadeira, socou farofa na boca. Engasgada, grunhiu:
_ Pai nosso!
Netuno gostou da mulher. Riu no barulho das ondas, aumentou a surdez cotidiana do marido...
Ela gritava:
_ Vou dar pra todo mundo!
As palavras de exorcismo da velha coagularam. A boca dura cheia de moelas.
A mulher vibrava, batia as mãos nas coxas, gargalhava com o senhor do tridente:
_ Cidra Cereser não é champanhe! Eu quero verdades!
A sogra conseguiu cuspir:
_ Meu filho, meu filho ela....
A coragem voltou para o mar,mas em água-viva queimou a mulher para que não fosse esquecida.
_ Meu bem, mamãezinha enloqueceu, enloqueceu.

quarta-feira, 4 de junho de 2008

Eterna Batgirl

Na minha árvore genealógica há galhos tortos e frutos impossíveis. Dirce, minha tia-avó é um desses. Desde o sétimo dia da criação adotou o mais claro dos loiros e a mais iluminada das gargalhadas, emoldurada por batons vibrantes.
Motivos não lhe faltaram para que a boca cristalizasse em arco e ecoasse amarguras. Sorte nossa que assim não foi. Ela é a generosidade escandalosamente alegre.
É a mais esperada em eventos de toda ordem: festas, velórios ou mesmo em chatices burocráticas, como cartórios. É o quebra-gelo que encoraja os parentes que quase nunca se veêm: _ "Cadê a tia Dirce? A Dirce já chegou? Olha lá está a Dirce!" E assim vai...
Nos hospitais Dirce visita os seus e os dos outros também. Serve-se sem cerimônia dos chás, leites e bolachinhas; seja dos carrinhos nos corredores ou direto dos criados-mudos. Sempre com uma piada, um causo ou uma oraçãozinha de acordo com as necessidades do adoentado.
Todas as histórias da minha infância: do lobisomem, do dedo-peludo (um dia eu conto), da noiva-baleada, do saci que levou meu tio no redemoinho, vieram desse pomar... No final, sempre havia a frase que não deixava dúvidas sobre a veracidade dos relatos: _" A tia Dirce viu tudo!" ou: _ "Pergunta pra Dirce que ela que sabe certinho!"
Há décadas ela é sinônimo de calças justas, botas e capas, que lhe renderam o apelido de Batgirl.
A casa da Dirce literalmente sempre teve portas escancaradas. Um entra e sai de gente, criança, cachorro e sempre, sempre, gigantescos caldeirões de comida, borbulhando num fogão enorme. Sempre alguém com um pratinho na mão. Não é pra menos que Dirce gozava de imunidade no bairro que há muito ficou perigoso. Até que um dia, ela resolveu variar e comprou uma longa peruca negra. E ela vem toda de branco, direto do manicômio (trabalhou em um!), tarde da noite, subindo o morro. Dois assaltantes fecharam o cerco, e ela não teve dúvida, arrancou a peruca às pressas, gritando: _"Calma lá, é a Dirrrrrrrce!"
_ "Desculpa a gente, Dona Dirrrrce!"
Nunca mais pensou em mudar o cabelo, sabe como é, loiro é sua cor de segurança.
A casa não existe mais. Ficou perigoso e doloroso demais, mesmo para a eterna Batgirl; afinal muitos se foram.
Minha última lembrança da casa é do casamento de uma prima. A família do noivo japonês acuada no canto e os frutos loucos no maior arrasta pé, na terra de chão batido. Até que a noiva começa a chorar. A Dirce acha que é emoção do dia, afinal de contas, o que tem demais ela demais ela ter decorado o bolo com pipocas, já que as fitas de coco não foram suficientes?
Isso só atiçou a gula da criançada: a boataria espalhou que tinha pipocas na mesa do bolo. Alguns juravam que eram das coloridas, de groselha. Teve muito croque e beliscão para dispersar a horda de crianças dispostas a tudo, que eu fazia parte.
Ela sempre que me via, dizia:_ "Essa é das minhas!"
Lembrei-me disso agora e entristeci, acho que seria banida do galho, se ela soubesse que perdi a medida e o valor dos ingredientes. É... tornei-me incapaz de admirar o seu bolo. Incapacidade temporária, pois ainda corre a seiva dos galhos tortos, mesmo em veias lamurientas. Para garantir comprei uma botinha de salto. Agora só falta a capa e é claro, virar a página...