terça-feira, 23 de agosto de 2011

Papéis

Era preciso escrever um bilhete. Mas, fosse o que fosse escrito, não seria suportado por qualquer papel. A assepsia alvejada do sulfite, o cenário dos papéis de carta ou pautas definidas, não contemplariam mensagem tão angular.

Buscou papéis do passado e soube o que queria: papel de pão. O adeus escrito no papel de pão imortalizado em músicas, poesias e fofocas da vizinhança: “Escreveu Adeus no papel de pão e se foi para sempre”. Tentou lembrar-se desse e de outros papéis distantes.

O tal, do pão, às vezes fino e encerado, era disputado pela criançada muito mais para desenhos, do que para cartas de despedida, felizmente.

Em rosa inconfundível vinha a carne embrulhadinha dos açougues.

Outro rosa era do papel higiênico, que devido a sua falta de gentileza, preferiu não aprofundar as lembranças,

As bananas embrulhadas em jornal, as argentinas maçãs em ninhos de papel roxo, balas duras de mel e hortelã embaladas em papéis permeáveis.

E agora, qual papel escolher para o bilhete da sua vida? A dramaticidade do adeus e do papel de pão, o roxo perfumado de tango e juras de amor, ou folhas de bananeiras marcadas a ferro com as quenturas da carne?

Assustada com a dureza de seus veredictos e sem fôlego para as certezas, decidiu por hora escrever no vento e distrair-se com as notícias vencidas do jornal das bananas.

sexta-feira, 12 de agosto de 2011

Bolinhos de tempestade


" O ano passado passou tão apressado
Eu sei que foi um corre-corre-corre danado

O ano inteiro eu passei sem dinheiro”...


Acordei com essa música na minha caixa craniana. Rita Lee nos discrepantes anos 80. Ai, que já acordei cansada.

Afinal essa modalidade de corrida que pratico, não revigora, não emagrece e perder-se de si é um dos seus efeitos colaterais.

Atrasada. Corre-corre-corre.

Tentei espantar o cansaço com um balde de café. A música interna foi sumindo e de repente o Sérgio Chapelin começou a narrar uma história dentro da minha cabeça (não sei por que, logo o Sérgio Chapelin):

“Há muito tempo, no coração da África, ingleses em expedição estavam apavorados diante da possibilidade de passarem a noite na selva. Assim, impuseram um ritmo desumano aos nativos que carregavam toneladas européias, durante todo o dia. Porém para o desespero dos ingleses, de repente os carregadores pararam. Ignoraram os gritos, as ameaças. Imóveis, sem descansar a carga dos ombros. Após algum tempo, retomaram a marcha com a mesma obstinação e disseram: Estávamos rápidos demais, nossas almas ficaram lá atrás, precisamos aguardar por elas, o sol já vai se por".

Foi quando me dei conta que estava sozinha, sem Sérgio (ufa!) e sem alma. Resolvi esperar a segunda chegar, comendo bolinhos de tempestade. Massa de pão aberta em tirinhas, fritas e passadas no conforto: açúcar e canela.

Simples assim. Como pude esquecer que gostava?

Cada mordida dissolveu um pouco o cansaço, mas a alma birrenta veio devagar, molengando. O bolinho feito pela minha mãe foi fisgando tantos outros gostos esquecidos. Carboidratos anímicos. Gostos possíveis, quase extintos!

Bolinho de tempestade findos, veio a bonança

Tênis calçados, corrida agora com alma e com gosto..

Afinal a Rita continuou:


...“Nem sempre tem vento

Mas sempre tem jeito pra dar...”

Letra e música na íntegra:

http://www.youtube.com/watch?v=uTcfSSkE9Ao




segunda-feira, 8 de agosto de 2011

A Vingança do Jatobá

foto: Neide Rigo do blog Come-se

Jatobá comi uma vez, ainda com dentinhos de leite. Tentei gostar, pois gostava do tio que trouxe a frutinha esquisita com tanta animação, mas que nada! Meu cotidiano farto de laranjas e comedido de maçãs, não sustentou a textura inédita e o cheiro de chulé.

Cresci alheia à saga dos Jatobás, sem me interessar pelos seus dotes culinários. Mas, mesmo assim, recebi esses dias, um email de um Jatobá deprimido. Contava-me que a despeito de suas possibilidades gastronômicas, continuava a ser ridicularizado por árvores das espécies que dão frutos cheirosos, coloridos e suculentos. Beldades acostumadas com os flashs das grandes festas. Contou-me que no farfalhar das folhas, sussurram: Fedegoooooso! Fruto feio! Vangloriam-se de suas origens do além-mar e de sua relação íntima com chefes famosos. O bom Jatobá de madeira forte e farinha polivalente confessou-me: _ “Ai, que me falta glamour!”. Foi de partir o coração!

Numa conspiração do destino, no evento Paladar desse ano, as alquimistas Ana Soares, Mara Salles e Neide Rigo em sua aula de invólucros naturais, apresentaram entre as inúmeras bonitezas das folhas e palhas, uma caixinha de jóias comestíveis. A vagem do Jatobá cortada com esmero abrigava três suspirinhos feitos com sua farinha. Carpintaria da perfeição em marrom profundo com amarrilho natural. É claro que arrancou palmas da platéia e delírio do Senhor Jatobá, uma cinderela vingada!

As caixinhas se tornaram objeto de desejo, resisti ao ímpeto de furar a mão de alguém com o garfinho de madeira, para garantir a minha. Faltou-me coragem, de forma que fiquei sem.

Recebi mais emails, alguns dizendo que depois disso o Senhor Jatobá está insuportável e outros dizendo que existem outros frutos clamando por seu dia de princesa.

Alguém se habilita?