quinta-feira, 8 de março de 2012

Hoje sem falar de comida, mas com fome!


Bebê feinho, como todos do berçário - diziam.

Bonitinho, como todos do berçário - diziam outros.

Ninguém entendia porque aquele bebê feinho e bonitinho inspirava tanto desconcerto, ameaçando sabe-se lá o quê - mas ameaçando.

Foi batizada com um nome preventivo: Crisálida.

E a maldição ou benção do nome vingou. Usava poncho ocultando as asas que insistiam em crescer. Poncho sempre - para os dias quentes, os de linho.

Atava os braços junto ao corpo com o mais grudento e depilatório esparadrapo. Gazes, ritual de mumificação matutino, sem falhar dia que fosse. Por fim, o poncho, vestido com o auxilio da cabeça e das ondulações do corpo - como lagarta que não era, mas pelo medo que tinha.

Mas, na aldeia, o que não tinha explicação científica e não era milagre, não podia ser: era heresia e doença. Tratada com muito branco: das paredes, lençóis, roupas, pensamentos, éter, leite de magnésia.

Cassavam tudo o que voasse ou fosse vermelho. De paixões a flores. Nenhum olhar erguia-se durante o crepúsculo ou aurora,quando o céu estende as cores como tentação. Se da terra o rubro brotasse era benzido com querosene e absolvido com fogo. Nos vinhedos, só sauvignon blanc e riesling.

Crisálida era crime duplo: voava vermelho.

Nas cheias da Lua tirava com cuidado os esparadrapos que martirizavam os movimentos: subia na mesa desejando que a madeira fosse viva, e o tampo, copa.

Esticava as asas doloridas, e treinava entre os móveis e lustres: oitos, espirais, vôos rasantes.

Era então Dodô, águia, gavião, esquadrilha da fumaça, ELA.

E a cada vôo interno, fortalecia-se para que o escárnio dos que não sabem beijar, e só podem gritar - Impossível ! Aberração ! Loucura ! - não fechasse a sua envergadura.