sábado, 28 de junho de 2008

Farofa ou Um minuto de sereia

A farofa foi preparada com esmero, assim achava a sogra. A farofa foi preparada com pirraça, assim jurava a nora. A farofa foi feita pela mãe e isso bastava ao filho. A primeira bem que podia ter esquecido as moelazinhas, afinal, nem gostava tanto delas assim. Às vezes, carregava nas cebolas picadinhas, toucinho e moelas nem eram cogitadas. Bem que ela viu na feira ontem mesmo, bananas da terra lindas em sua feiúra de casca escurecida. Viu e desviu imediatamente, afinal a imagem da nora dizendo: _ "eu adooooro farofa de banana da terra!", foi concatenada imediatamente com a aversão da nora por miúdos . E ligeira o quanto seus joelhos desgastados permitiam, foi logo pedindo na barraca do frango, meio quilo de moelazinhas.
_ Custa você comer só um tantinho? Intimou o filho da mãe e marido da mulher que odiava moelas, correndo para o mar.
A maldade na velha era puro êxtase, o filho em sua defesa e a moela alí, na boca daquelazinha, plantada como uma praga, causando-lhe náuseas e derrota, era uma benção!
Com os pés em ancinho na areia a mulher constatou: tinha 30 varizes e muitos anos.
As veias inchadas de estouro rubro.
Traição: o sol não veio. Veias e paciência em ebulição, estouradas. A loucura tomou posse: a mulher achou que tinha 30 coisas e nenhuma varize, achou que sua barriga era menor que a mesquinhez daquele humano de short xadrez e frouxo que rolava no sal das águas.
A louca que agora era mulher rugiu:
_ Filho da puta, odeio você!
A sogra despejada entre as listras da cadeira, socou farofa na boca. Engasgada, grunhiu:
_ Pai nosso!
Netuno gostou da mulher. Riu no barulho das ondas, aumentou a surdez cotidiana do marido...
Ela gritava:
_ Vou dar pra todo mundo!
As palavras de exorcismo da velha coagularam. A boca dura cheia de moelas.
A mulher vibrava, batia as mãos nas coxas, gargalhava com o senhor do tridente:
_ Cidra Cereser não é champanhe! Eu quero verdades!
A sogra conseguiu cuspir:
_ Meu filho, meu filho ela....
A coragem voltou para o mar,mas em água-viva queimou a mulher para que não fosse esquecida.
_ Meu bem, mamãezinha enloqueceu, enloqueceu.

quarta-feira, 4 de junho de 2008

Eterna Batgirl

Na minha árvore genealógica há galhos tortos e frutos impossíveis. Dirce, minha tia-avó é um desses. Desde o sétimo dia da criação adotou o mais claro dos loiros e a mais iluminada das gargalhadas, emoldurada por batons vibrantes.
Motivos não lhe faltaram para que a boca cristalizasse em arco e ecoasse amarguras. Sorte nossa que assim não foi. Ela é a generosidade escandalosamente alegre.
É a mais esperada em eventos de toda ordem: festas, velórios ou mesmo em chatices burocráticas, como cartórios. É o quebra-gelo que encoraja os parentes que quase nunca se veêm: _ "Cadê a tia Dirce? A Dirce já chegou? Olha lá está a Dirce!" E assim vai...
Nos hospitais Dirce visita os seus e os dos outros também. Serve-se sem cerimônia dos chás, leites e bolachinhas; seja dos carrinhos nos corredores ou direto dos criados-mudos. Sempre com uma piada, um causo ou uma oraçãozinha de acordo com as necessidades do adoentado.
Todas as histórias da minha infância: do lobisomem, do dedo-peludo (um dia eu conto), da noiva-baleada, do saci que levou meu tio no redemoinho, vieram desse pomar... No final, sempre havia a frase que não deixava dúvidas sobre a veracidade dos relatos: _" A tia Dirce viu tudo!" ou: _ "Pergunta pra Dirce que ela que sabe certinho!"
Há décadas ela é sinônimo de calças justas, botas e capas, que lhe renderam o apelido de Batgirl.
A casa da Dirce literalmente sempre teve portas escancaradas. Um entra e sai de gente, criança, cachorro e sempre, sempre, gigantescos caldeirões de comida, borbulhando num fogão enorme. Sempre alguém com um pratinho na mão. Não é pra menos que Dirce gozava de imunidade no bairro que há muito ficou perigoso. Até que um dia, ela resolveu variar e comprou uma longa peruca negra. E ela vem toda de branco, direto do manicômio (trabalhou em um!), tarde da noite, subindo o morro. Dois assaltantes fecharam o cerco, e ela não teve dúvida, arrancou a peruca às pressas, gritando: _"Calma lá, é a Dirrrrrrrce!"
_ "Desculpa a gente, Dona Dirrrrce!"
Nunca mais pensou em mudar o cabelo, sabe como é, loiro é sua cor de segurança.
A casa não existe mais. Ficou perigoso e doloroso demais, mesmo para a eterna Batgirl; afinal muitos se foram.
Minha última lembrança da casa é do casamento de uma prima. A família do noivo japonês acuada no canto e os frutos loucos no maior arrasta pé, na terra de chão batido. Até que a noiva começa a chorar. A Dirce acha que é emoção do dia, afinal de contas, o que tem demais ela demais ela ter decorado o bolo com pipocas, já que as fitas de coco não foram suficientes?
Isso só atiçou a gula da criançada: a boataria espalhou que tinha pipocas na mesa do bolo. Alguns juravam que eram das coloridas, de groselha. Teve muito croque e beliscão para dispersar a horda de crianças dispostas a tudo, que eu fazia parte.
Ela sempre que me via, dizia:_ "Essa é das minhas!"
Lembrei-me disso agora e entristeci, acho que seria banida do galho, se ela soubesse que perdi a medida e o valor dos ingredientes. É... tornei-me incapaz de admirar o seu bolo. Incapacidade temporária, pois ainda corre a seiva dos galhos tortos, mesmo em veias lamurientas. Para garantir comprei uma botinha de salto. Agora só falta a capa e é claro, virar a página...

quinta-feira, 3 de abril de 2008

TERTULIANA E AS MANGAS

As brecadas dos ônibus deram-lhe bom dia. Não, não era bom dia, mas sim um aviso:
_ Corra atrás da hora, você a perdeu!
Mas foi lesma que deslizou até o banheiro. Amarrou os cabelos sem penteá-los: ninho feito de longos fios elétricos.
Esfregou com força os dentes, que já não eram lá tão branquinhos; arrancando culpa e tártaro.
Desejou então a camisa verde, que no cesto sonhava com ferro quente a alisar-lhe as rugas.
Pensou no trabalho que a esperava: tanta preguiça; e no que gostaria de ter: tão atrasada. Alisou a camisa sem calor, com mãos molhadas.
Queria mesmo quintal e laranjeira, dar trégua às coisas, mormaçando o dia, chupando, chupando os frutos... Mas lembrou-se que era mentirosa, não gostava de laranjas. Buscou verdades. Onde? No paladar, que não mente. Estalou os lábios com ruído, mas foi o aroma quem respondeu. O cheiro das mangas amadurecia na fruteira de vidro...
Amava mangas. A verdade sob várias formas: pequenas e fiapentas, carnudas, suculentas, grandes também, algumas berrando tons de amarelo, outras sussurando verde e rosa.
Despejou-as na sacola de palha e lá se foi para o escritório.
Por quê Tertuliana, que até então era o remanso das coisas ordenadas ? Indagavam encolhidos pessoas e relatórios, diante da aparição de camisa amassada, sem calças e com mangas.
Enfeitou mesa e computador com as frutas. Entre uma chupada e outra, limpava os dedos com lenços perfumados, e digitava placidamente um novo contrato.
Decidiram chamar o Doutor Nelson, com larga experiência em dependentes químicos. Ele buscou em vão sinais de drogas, apenas olhos injetados de esperança.
_ Vamos, Tertuliana, vamos conversar lá no ambulatório. Eu quero te ajudar.
_ Então, traga-me uma faca...
O silêncio em sacas de concreto, desabou.
Afastou macio as manguinhas filhotes que dormiam no telefone.
_ Dona Aparecida ? É a Tertuliana. A senhora pode me trazer uma faca bem afiada, rápido ? Obrigada.
Sem trocar palavra, dois correram para a copa - impedindo que a obstinada Cida, cumprisse a sua obrigação. O telefone, alheio a tudo e adestrado pela inconveniência, tocava. Ninguém ousava.
_ Vamos, Tetê - implorou a recepcionista maternalmente, apesar da adolescência de suas espinhas. _ Você precisa descansar...
Tertuliana, decidida como mármore:
_ Cadê a faca que eu pedi ?
Doutor Nelson tentou se aproximar.
_ Não ouse me interromper ! - já com o punhal de cartas nas mãos.
_ A culpa é do desgraçado do Seu Tobias, peste. Ninguém agüenta tanta pressão.
_ Vem, querida, você está cansada. - soluçava Dona Odete, balançando os seios frouxos por debaixo do vestido florido.
Com o punhal cortou as carnes - pingando o sumo de coração-de-boi, doce.
Continuaria gostando das fiapentas, mas queria experimentar todas as outras. Não era infiel, não... Só não tinha mais culpa e nem pressa. Era a primeira vez que não se sentia atrasada.
Mordeu com sensualidade de felação o grande naco da fruta descoberta. As outras mangas, como não eram mesquinhas, não se sentiram traídas. Só as pessoas.

domingo, 16 de março de 2008

Noites de piqueniques e madrugadas de espaguete


Para preservar a identidade de meu amigo, vou chamá-lo de Nário Louis.
Éramos vizinhos de janela. Predinho estranho aquele, com ares de casa de repouso para senhoras excêntricas, se não fosse por uma meia dúzia, mais jovem, mas igualmente excêntrica. Nário e Eu conversamos pela janela e achávamos que ninguém ouvia.
Acho que era um tipo de alucinação causada pelo estoque de vinhos portugueses que arrematávamos semanalmente, até que os donos do mercado resolveram corrigir o preço (mas muito segredo já havia sido contado e muito sinal da cruz já havia sido feito pelas nossas ouvintes).
Tínhamos noites de piqueniques e vídeo. Nário estendia toalha xadrez sobre a cama, pois que no chão, não cabia. Traíamos os portugueses com as loiras geladas, que acompanhavam melhor os cachorros-quentes com duas salsichas e muita mostarda. Cada detalhe era cuidado por Nário, coisas feias não eram postas sobre a sagrada toalha, nada de descartáveis. Para garantir um toque campestre, comprou um grilo mecânico. Uma caixinha chinesa infernal. Depois de dois minutos você já implorava por um inseticida ou se postava no meio na casa com chinelos na mão e ar de caçador, mesmo sabendo que não era de verdade. Menos Nário... que chegava a fechar os olhos com expressão iluminada. Uma vez ele surtou por dias: crim, crim, crim, crim. Nem dei as caras... Será que essa era a intenção?
Quando escolhíamos os filmes, ele sempre queria rever um triste e eu vetava. Afinal, eu choro até em desenho do pica-pau e quanto mais triste o filme, mais feio eu choro: aquele choro de cara torta, que dói a garganta de ficar segurando, e quando vem à tona, reboca outros choros contidos e aí é um horror: uááá, ranho escorrendo e depois a encarnação de "Rudolph", a rena do nariz vermelho! Pensando bem, talvez meu choro fosse a atração do piquenique... Mas, a mente ardilosa de Nário era páreo duro. O filho da mãe enchia os copos, colocava o filme depois da abertura e eu só percebia que estava vendo o “Regresso a Bountiful” na cena em que a velhinha fugitiva delicia-se com migalhas de seu lanchinho.
Teve uma época que só fazíamos macarrão alho e óleo, com muito alho! Muito mesmo!
Chegávamos de madrugada, rindo pelas escadas, e a festa continuava: velas, música baixinha, gargalhadas nem tanto. Enquanto a água do espaguete borbulhava, um morrinho de alho picado se formava.
_ Que você acha, tá bom?
_ Faz do seu jeito!
E o meu jeito? Ah! “No prazer sou superlativa”* , e acrescentava mais alguns dentes.
Pratos fumegantes e mais brindes. E o melhor do tudo: minha cama estava só a uns vinte passos! Belos, adormecíamos, exalando vapores tóxicos até a estratosfera; que certamente afastaram vampiros e alguns amores.
Às vezes, fazíamos festas sem comida; mas nunca, comida sem festa.
Que venha à pieguice, mas alegria é realmente o melhor tempero!

* não sei se essa frase é de alguém, se não for é minha.

quarta-feira, 12 de março de 2008

jabuticabas ressonantes

Nas últimas semanas, alguns dias desandaram, algumas horas embatumaram. Faltaram ingredientes, e os disponíveis não apeteciam. Afinal meu paladar sumiu! Isso não é recurso literário, mas sim, sintoma de investigação médica.
Paladar e parte do tato. Sutil, suave e morno, deixaram de existir. Crocante virou concreto triturado. Aos sabores mais fortes restavam a adivinhação, se eu estivesse no restaurante escuro descrito no blog sopa vermelha, comeria papelão sem me dar conta, afinal comia com os olhos. Tentava ressuscitar a memória gustativa soterrada em arquivos moribundos. Então a busca pelo sabor perdido foi afoita, desesperada e calórica:
_ Quem sabe um sorvete de coco com abóbora restabeleça a ordem?
_ Três é um número mágico, quem sabe no terceiro prato de arroz com feijão, a coisa toda se resolva...
Sem contar a pimenta cozinhando a mucosa, e nada!
Foi um festival de rasgar pacotes, abrir armários, sem contar o vinho que apesar da cor, foi o reverso do milagre: quase água; sacrilégio!
Picadas aqui, choques acolá e o medo de tornar-me íntima do pessoal da enfermagem.
A minha veia trágica instigada pela falta de tato do médico em revelar suas suspeitas, contribuíram para esse minha nova verdade: nascemos sozinhos, morremos sozinhos e entramos no tubo de ressonância magnética sozinhos! Logo eu, claustrofóbica! Tentei de tudo para me acalmar e nada. Patético: uma mulherona segurando uma campainha de borracha, que bem que poderia ser um patinho alegre e colorido, ao invés daquela coisa feia e preta, impregnada de digitais e desespero. Imaginei todas as tragédias que poderiam acontecer-me: ser esquecida enquanto o técnico saía para lanchar, os sons serem do alarme de incêndio, a máquina desregular e fritar-me como um salsichão, desmaiar e não conseguir apertar a campainha . Sem contar o ar que não bastava, não bastava. Rezei, mas... Lembrei-me do filme “O exorcista” onde a possuída faz uma série de exames em máquinas assustadoras. Também me lembrei dos relatos dos abduzidos a cerca das experiências extraterrestres. Jurava que era um ser cabeçudo que estava por trás do vidro, a dizer-me : _ vamos ter que interromper, fique quieta, não engula, não se mexa.
E eis que no meio da paranóia, uma benção adocicada se fez presente: jabuticaba. Foram desfilando na minha mente, casquinhas finas rompendo-se, pretinhas , expondo viscosidade branca e veiozinhos arroxeados. As pequeninas de sabor concentrado e também as grandonas, que compensam o pouco sabor, pela explosão na boca.
As danadinhas pipocando pelos troncos, agarradas quando verdes e despencando como colagem escolar quando maduras.
O ar faltava e dá-lhe mantra: ja-bu-ti-ca-ba, imagens de bacias repletas de bolinhas, sem casca, os caroços deslizando entre os dedos. Minha palma levando concha cheia para o céu da boca.
Saí já noite escura como casca, procurando-a nas banquinhas , mas já tinham ido dormir.
Sai o diagnóstico assustador e entra o novo: alergia rara.
O tato voltou assim como o paladar. A jabuticaba ficou para sempre e urgente, mas cadê? Não é época! Continuam ressonando:
“o olha a preta colada no tronco
Que mão do moleque
Arranca no toque...
O que bate na boca
Que a jabuticaba faz
Ploquet, pluft, nhoque
Faz ploquet, pluft, nhoque” (trilha do sítio do pica-pau-amarelo)
Alguém tem um pezinho com safra temporã?

quarta-feira, 6 de fevereiro de 2008

Presas pelo estômago

No século passado, as criancinhas temiam algumas coisas: Deus, pai e mãe, injeções, homem do saco e repetir de ano. Isso mesmo! Tomava-se bomba nos tenros anos chamados de primário. Repetir o ano letivo no ginásio, tinha lá um que de rebeldia, mas no primário, era coisa muito triste. Ninguém queria a pecha de burraldo. (o politicamente correto ainda era só um embriãozinho).
Com o final do ano vinha a paranóia e ela freqüentava a minha casa. Teve um ano que decidimos fugir de casa, antes mesmo da entrega dos boletins.
Iríamos morar em um buraco, escavado num terreno baldio. Só o aumentaríamos um pouco, para um quartinho. Levaríamos travesseiros, brinquedos e comida. E fomos logo tratando do estoque de alimentos (traumatizadas pela história de terror da formiga e da cigarra). Moedas contadas, compramos uma canequinha de amendoins, num embrulhinho de papel de pão. Tentação, teu nome é amendoim japonês!
_ “Vamos comer um só, tá?”
Lá pelo terceiro, vinha uma mudança nos planos:
_ “Sabe, acho que não vamos repetir, não...”
Disputávamos o título da filha adotiva (apesar das pessoas acharem que éramos gêmeas).Somente a legítima adotiva parte em busca dos verdadeiros pais! Quem sabe ricos? Em algum lugar havia um quarto rosa e bonecas cantantes à espera da herdeira.
As fugas eram planejadas quando minha mãe ia para o centro da cidade.
_ “Sim, é hoje!”. Mas, a saudade da falsa mãe já crescia no peito.
_ “ Nada de arte, heim! Quando eu voltar um trago um docinho”.
Além do beijo estalado, quem sabe um tablete de diamante negro ou cocoquinhos açucarados?
Trepava no muro e dava tchau , até ela desaparecer ladeira abaixo.
Coração pulando corda:fogo, fogo, foguinho....
Nos olhávamos cheias de medo e esvaziadas de motivo. O cérebro criminoso de 9 anos, declarava:
_ "Vamos esperar o doce... Mas é última vez!"
_"Tá, tá". Concordava, já sentindo o gosto de mãe com chocolate.

domingo, 27 de janeiro de 2008

Goiabas e Gato

O gosto original dessa memória foi perpetuado, resistiu aos temperos das explicações psicológicas.
Ainda não tinha cinco anos. Passávamos uma chuva na casa dos meus bisavós. As madeiras da casa exalavam a religiosidade de minha bisavó e as esquisitices de meu bisavô.
Eu estranhava tudo: a umidade que recendia do poço e a lamúria das cordas içando água misteriosa. Minha boca doce de criança estranhava o frescor e a ferrugem das canecas de lata.
Estranhava o cheiro de macela mofada dos travesseiros, o violão de meu avô (que nunca era tocado), a creolina (que ele usava para tudo, inclusive para tratar hemorróidas), e suas excentricidades culinárias , como doces temperados com alho!
O cheiro de quinquilharias vindo do porão, cogitava a presença de aranhas de mil pernas peludas e as teias só confirmavam a possibilidade. Na sala de jantar com o odiado chá-com-leite entre as mãos (que era obrigada a tomar) , não conseguia tirar os olhos de uma tosca pintura que retratava os caminhos do bem e do mal.
O do bem mostrava a obstinação da família de fiéis diante do íngreme caminho, desembocando num paraíso azul celeste e dourado. E o do mal? Um frenesi pincelado de vermelho: danças, taças de champagne, mulheres com luvas negras, gargalhadas, tudo terminando nas labaredas do inferno. Tinha medo do inferno, pois aquele baile me fascinava. O medo e o chá-com-leite abandonado na xícara enchiam-me de náuseas. Tinha medo do meu bisavô que era de veneta. Mas não havia medo que me afastasse do pomar de goiabeiras. Nada conseguia afugentar as crianças das árvores. Nem seus guardiões: taturanas de veludo negro, mandruvás espinhudos; nem mesmo o bisavô brandindo o facão nas mãos e jurando cortar os dedos de quem colhesse goiabas verdes.
A casca prematura amarrava a boca, mas a polpa doce e os carocinhos, soltavam os nós. E o medo nesse caso abria o apetite.
Dia ensolarado, acima de qualquer suspeita. Na varanda aguçávamos os ouvidos procurando a buzina do sorveteiro. O bisavô surge com uma assadeira exalando à carne assada.
_ “Prova, prova”. A mais velha, esperta,deu no pé. Pegamos um pedacinho de carne.
_”Gostou? É coelho”. Não, não gostamos; não sei se por ser coelho ou por estar queimada.
Que coelho é esse? Cogitavam os adultos.
A origem misteriosa do assado, foi revelada pelas goiabeiras. Trepando em seus galhos mais altos, a cata das bitelas , minha irmã descobriu a pele de nosso gato desaparecido: arreganhada e esturricada em cima do telhado.
Como se não bastasse cozinhar o nosso gato, que foi atropelado (descobrimos depois) e nos servir, num arroubo taxidermista , o velho costurou a pele e a recheou com jornal. Criou uma aberração dura, com buracos sinistros no lugar das órbitas, com a qual nos perseguia.
Profanou assim, não o só corpo de nosso animalzinho, mas a sua memória e a nossa inocência.
Gosto de fel, temperado com maldade e loucura.
O bisavô teve tempo de sobra para outras, pois se foi (sabe-se lá pra onde!) aos 104 anos.
De resto, até hoje não como coelhos , odeio chá-com-leite, adoro goiabas e bichanos. E para não arriscar, não provo churrasquinhos...

domingo, 13 de janeiro de 2008

Liberdade!


Tive anos de alma e paladar enferrujados. Faculdade: comida de bandejão.
Ideologias engolidas sem deleite, acompanhadas de salsichas, miojos, café solúvel e conhaques marvados. Mas, saberes e sabores mancos não saciam. E vontades não reveladas causam lombrigas.
No meu clã comemorávamos quando um restaurante de status era interditado (a inquisição teve uma reedição no final do século passado), comemorávamos cheios de inveja, disfarçada de fervor revolucionário.
Voyers amaldiçoando as festas de Babete, para as quais nunca éramos convidados. Afinal, quem convida chatos não-ilustres e não-familares? Nossa chatice era maior que a distorcida religiosidade dos convivas do filme e a nossa concepção de beleza e prazer, aprisionada pelo cego espartilho ideológico. Fosse música, literatura, hobbies, até comida, tudo passava por um crivo político,pretensamente onisciente.
Finalmente percebi que minha alma, assim como meu paladar, não estão confinados à classes, castas ou clubes.
Emergi com o desespero dos afogados!Busquei não só o ar que me faltava, mas todos os gostos; os que já conhecia e os que me atiçavam. Voracidade pantagruélica foi precisa, a fome de mundo despertou furiosamente. Excesso e descomedimento:efeitos colaterais da liberdade recém conquistada. Mas, a fome da hibernação vêm cedendo lugar a sedução mensurável de textura, cor, forma, cheiro, sabores livres.
Estendo minha língua, tapete nobre para os convidados. Alguns dóceis, outros exatos no ponto de amargura, incandescentes e insossos também, pois às vezes careço de pausa.
Quando posso, o corpo inteiro viaja e quando não, a língua leva corpo e alma, em buscado dos sabores sabidos!

quinta-feira, 10 de janeiro de 2008

Sopa de Leopardo


Essa memória recorta do tempo um punhado de carinho fraterno.
Adorávamos brincar de comidinha. Comestível ou não. Nossos bolinhos de areia eram finamente decorados com tatuzinhos-de-jardim (que invariavelmente arreganhavam-se todos na hora do parabéns à você).
Lá em casa sobremesas não eram fatos, precisavam de merecimento, ou melhor de provações: conseguir sobreviver a todos os pratos que detestávamos! Especialmente às torturas líquidas- fumegantes: sopas que ocultavam terríveis legumes (que hoje adoro). Tudo temperado fartamente com lição de moral:
_ Há muitas crianças que não tem um pedaço de pão-velho para comer. ´
Frase tão antiga quanto o mundo. Infelizmente ainda é verdadeira, e infelizmente isso não aplaca a miséria do mundo... Só enche os pratos de culpa, erva maldita e maligna!
Fosse fruta trivial ou manjar dos deuses (no caso, o de coco mesmo), o ritual era esse.
Primogênitos em geral são extremos: ou chutam o pau da barraca rebelando-se contra tudo, ou guardam o pau da barraca com suas próprias vidas, aperfeiçoando as regras paternas.
Minha irmã mais velha pertencia ao segundo gênero. Quando ganhávamos ou desviávamos alguma iguaria da cozinha, ela reclamava seus direitos de nascimento, controlando os víveres e as irmãs mais novas. Antes de comermos a banana amassada, paçoquinhas, fosse o que fosse, tínhamos de tomar a temida “Sopa de Leopardo”. Preparada por ela com esmero: água da torneira servida em pratos fundos, tomada à infindáveis colheradas.
Às vezes fingíamos que não gostávamos ( o que realmente era verdade, quando tínhamos que repetir o prato) e outras que adorávamos cada colherada daquela água fria com gosto metálico.
Que sopa divina! Gosto pungente de raríssimos Leopardos invisíveis, encharcados com molho de risadas. Perfeição! Perfeição é sentimento, assim como receita de família.
Beijos! Obrigada pelas boas-vindas!

quarta-feira, 9 de janeiro de 2008

Pastelzinho de Belém

Minha lição de casa da matéria Educação para o Sabor, ministrada pelo fantástico professor Luiz Fernando Escouto, era uma degustação comentada. O meu desafio: aguçar minhas papilas gustativas, perceber sutilezas. Ei-lá:

Pastelzinho de Belém que deve ser chamado pastel de nata. De Belém, só os de Belém mesmo, os fabricados na antiga “oficina do Segredo”.
Mas estou cansada dessa história, daqui a pouco, acarajé só da Bahia, aos demais restará o nome genérico: bolinhos de feijão fradinho. Então o meu brasileiro é de Belém e acabou!
Na verdade estou realmente cansada, por isso essa rabugentice descontada no doce.
Confesso, esse não é o primeiro pastelzinho que compro para fins educacionais.
As outras tentativas fracassaram. Na primeira a glutonice foi mais forte, comi já na saída da padaria, na rua mesmo. Fome e o sussurro quente de dentro do saquinho: devora-me....
Senti-me muito mal em comer o dever de casa sem o ritual proposto.
Para segundo, cuidei de todos os detalhes, com o esmero que dedicamos aos encontros com amores novos. Silêncio e toalha limpa. Enfim sós, eu e o portuguesinho. Contato visual, depois olhos fechados para o perfume. Telefone. Era minha sogra, e talvez pelo teor do monólogo, quando dei por mim, meu dedo engordurado empurrava convulsivamente os últimos pedaços de massa quebradiça, boca adentro.
Essa é a terceira tentativa. Estou com medo de não sentir nada do proposto, por isso estou tagarelando feita louca .
Esquentei-o no forno. Começo mal: queimo levemente o nariz, num afã de aspirar e codificar os odores secretos. Cheiro doce. Mas isso não é muito... tento especificar: cheiro de doce antigo: açúcar queimado, ovos... leite. Se há baunilha, não sei dizer.
As formas: as bordas da massa folheada desabrochando, páginas de um onírico livrinho circular.
É, de fato, o pastel de Belém não é um modelo de beleza convencional. Se olhar mos as partes separadamente, ele é bem feio. O recheio assustado, encolhido no centro. Mas no conjunto sim, é belo. Como a Sofia Loren, traços desproporcionais reunidos, formando um rosto singular e magnífico.
Exageros á parte, a massa acastanhada requer devoção aos deuses: Saturno e Vulcano, pois é preciso dominar o fogo e o tempo.
O recheio degradê, vai do amarelo pastel ao austero marrom de suas manchas aleatórias. Impressão digital que os faz únicos. Pensando nisso, as tortas de morangos me parecem bobas.
Pequena dentada: texturas distintas. Cremosidade do recheio, tenras folhas próximas ao centro, até a resistência das paredes externas.
O doce impera os primeiros instantes, mas logo é deposto pela neutralidade da massa.
Amálgama de sabores. Minhas papilas gustativas não sabem mais nada.
Rendo-me. Outro dia arranco mais confissões desse dissimulado e gostoso português, que se foi e deixou um gosto de óleo na boca!

Rendas, ouro líquido e pérolas

Tabu pessoal desde sempre: ovos moles somente com arroz, nunca com feijão. Com feijão as gemas devem estar firmes e amarelo pálido. E isso já é outra memória, que não essa:Arroz com ovos! (que falávamos ôvos).
Três meninas com seus pratinhos forrados de perolazinhas de arroz , aguardando ovo quentinho. _Mãe, quero o meu com rendinhas! – seguidos de: _ eu também, eu também! Minha mãe soberana, ordenava e o óleo quente obedecia: retorcia as bordas da clara, tecia rendas fartas e estaladiças, coroas de filigrana. Clara de seda branca, circundando o frágil epicentro de ouro líquido.
Eis então, a erupção provocada pela ponta do garfo, a incandescência do magma dourado soterrando as pérolas barrocas. O gosto? É de nobreza, princesas que éramos.

Memórias Gustativas

Condensar as memórias dos meus sabores. Difícil tarefa! A palavra condensar evoca lata de leite condensado, lambida à exaustão, língua e dedos obstinados sob a ameaça das farpas metálicas.
Selecionar as memórias mais marcantes, escolher a dedo...
Escolher... E lá vou eu novamente, túnel do tempo: vulcões de feijão crú na mesa de fórmica, meus dedinhos escolhendo o destino de favas, carunchos e pedras.
Obviamente o feijão desperta o arroz ! O aroma do refogado de cebola e óleo, o protesto do arroz por ser jogado na panela quente : chiiiiiiii; anunciações do fim das brincadeiras lá fora, antecipando o cheiro de sabonete que viria em seguida.
Leite-com-café tomado na mamadeira rosa, exalando cheiro de plástico novo, é minha memória mais antiga. Rito de passagem: leite dos pequenos e café dos mais crescidos.
Gosto híbrido: conforto do leite e o café impelindo-me ao mundo que se apresentava.
Sinapses de comida e sentimento fervilham meu cérebro. E de repente é urgente falar dos temperos de ambos. E se eu como o mundo, sou esse mundo e por ele sou devorada, são inúmeros os relatos antropofágicos.
Mas já que o objetivo é degustar algumas memórias e não se empanturrar com uma enciclopédia, marchando: algumas delas.

segunda-feira, 7 de janeiro de 2008

Perdão chuchu!

Ao chuchu sempre coube o meu desprezo. Sequer o consolo da repugnância, que ao menos define senão as coisas, os sentimentos. Quase uma pessoinha boa, mas chata! Confesso: às vezes prefiro os malvados aos chatos, pela pura razão de não saber lidar com os segundos sem sentir-me invadida ou corróida por remorsos. Os maus mobilizam-me: revidar, odiar e quiçá vingar. Já os chatos... Não consigo odiá-los em paz, ignorar as insistências telefônicas, ou simplesmente esconder-me atrás de postes e árvores, sem sentir cheiro de culpa e enxofre; ou ainda enxergar nas nuvens, seus rostos magoados. Era assim com o chuchu. Tão diferente do fígado, que odeio e ponto! Já comi desavisada e achei que a carne estava estragada. Certeza libertadora. Mas voltando ao chuchu, nunca me acostumei com o líquido rompido, destoando de sua textura. Nem aos apelos: _ é gostoso, não tem o gosto do chuchu. Ora, para que comer algo sem sentir? Deprimente como falta de tesão!
Sem contar as investidas dos consultores organizacionais que comparam as pessoas a chuchus e pimentões: "o que você quer ser? alguém que deixa sua marca ou absorve tudo ao seu redor? Pobre chuchu e nesse caso também, pobre pimentão e pessoas.
Segui tranqüila minha vida sem sentimentos viscerais ao chuchu.
Até que um dia, minha sogra (sim, minha sogra) apresentou-me ralado com coentro: sem sorrisos, mas convicta: "_ Parece camarão"! Não achei. Como pode parecer camarão?
Mas, confesso: nesse dia fui tocada! Fiz raladinho, punhadinhos de outras ervas (mas nunca movida por pretensões alquímicas de transmutar chuchu em camarões...).
Até que um dia, vindo sei lá de onde , uma imperiosa vontade de comer suflê de chuchu me deixou insana (juro: nada de larica!) .Aventurei-me... Vozes do passado sussurravam algo como lavar em água corrente para não manchar as mãos. Não sabia o que fazer com aquela parte branca (ainda não sei).
Sei exatamente o momento em que a paixão eclodiu: quando misturei o estranho creme verde (não fica uniforme quando processado) ao bechamel e seda nova surgiu! Colherada boca a dentro, cru ainda. O suflê a despeito de tudo que já ouvi, cresceu lindo ao som de rock distorcido do meu radinho e ignorou minha vigília isana na porta do forno.
Minhas papilas gustativas acordaram para essa nova experiência. Reconheci a sutil dirença entre suavidade e sem-gracice. Aquele verde-criancinha não foi deixado de lado nas brincadeiras do queijo e ovos: reinou!
Veredito: sim, eu gooooosto muito! Todo do problema era a textura.
Ação: pela graça concedida espalhar "santinhos digitais". E para começar bem o ano:
Perdão chuchu! Obrigada Dona Jacy!
Em breve, as peripécias de Chuchu e Eu. (E não é que lembrei-me que o meu primeiro beijo foi com um tal de Chuchu?!)