A
mesa estava posta com toalha verdadeira. Cheirosa e com provas indubitáveis do fracasso
do tira-manchas: um quê de tintas descuidadas
de café e vinho , sumo de frutas e auréolas de gordura.
A
mulher trazia a travessa com a expectativa de encontro amoroso, daqueles bem
sexuais, com lingerie selecionada, corpo amaciado com esfoliantes e óleos
perfumados, desejando percepção de quem desfrutasse. No caso não era seu corpo,
mas o do frango orgânico e caro, que resplandecia temperos alquímicos das
Índias e da horta apertada que brigava por uma réstia de sol com horário
marcado para aparecer na vidraça.
Esfregou
a galinácea com as cores em pó de vermelho preponderante, quebrou cristais de
sal grosso com esferas de pimenta negra. Quis pó de pirlimpimpim: noz moscada
ralada no ato. Sem hesitar lanhou em
ralinho diminuto a bolinha fugidia. Era sempre assim, a noz simplesmente
desvencilhava-se dos dedos e ralo, mergulhava na marinada ou na água e sabão da
pia. Era um jogo de pega-pega entre a noz e a mulher. A amêndoa fazia tipo antes de inebriar o
mundo com perfume extasiástico.
Ela
conheceu a galinha ainda com penas ciscando liberdade. Apontou com dedo e dose de culpa o destino de
panela. De pedra sabão comprada no cartão que esperou ansiosamente a fatura
fechar. Queria curar a panela com milagre rápido, mas sabia o punhado de
paciência e uso que utensílio clama.
A
galinha merecia respeito. Aquele que as pobres dispostas em isopores em
gôndolas frias não recebem. Quis
homenagear a penosa. Ornamentou com colar de cebolas pérola. Não havia mais
tempo para a mulher se preparar como planejou: banho, roupa limpa e maquiagem.
Jogou água fria no rosto que não foi o bastante dissolver a gordura. Mas a
mulher não esmoreceu: batom de quase vermelho, de quase tempero.
Uma
varinha de canela entrou no caldo borbulhante, desejos de feitiço: os comensais
a cada garfada seriam tocados.
O
cozimento lento da carne dura despertaria do transe urbano, dissolveria
tensões.
O
tomilho não teria sido ceifado em vão: revigoraria ânimos.
Proibiu
celulares ao lado dos talheres. Desligou a chave geral. Acendeu velas que
tinha, de aniversários passados, as guardadas para o natal e até uma de Santo
Expedito.
Em
respeito à galinha vetou assuntos de mortes, doenças e contendas.
Decretou
felicidade e desconforto. A galinha foi sorvida em silêncio. Ninguém relatou
seu dia ou compartilhou sonhos.
O
silêncio foi rompido:
_
Tem sobremesa, mãe?
E
a festa se fez: barulho de sorvete-servido-sorvido aos toletes em copos de
requeijão e colheres de sopa. A família
que era agora soltou o ar. Som de risadas e da TV encheram a casa. Das
discussões também.
A
mulher diante das louças para lavar pensou em cortar os pulsos, mas acendeu um
cigarro.
Tirou
a teima, provou um naco da coxa. E se dou conta: estava carregada de
responsabilidade!
Desdenhou
o sorvete, mas inocentou a galinha, o vinho e a cozinheira.
Absolveu
mais vinho.
E
sápida soube que os temperos são voláteis, nem sempre resistem a potes
politicamente corretos. Sob vigilância amargam ou insossam.