domingo, 27 de janeiro de 2008

Goiabas e Gato

O gosto original dessa memória foi perpetuado, resistiu aos temperos das explicações psicológicas.
Ainda não tinha cinco anos. Passávamos uma chuva na casa dos meus bisavós. As madeiras da casa exalavam a religiosidade de minha bisavó e as esquisitices de meu bisavô.
Eu estranhava tudo: a umidade que recendia do poço e a lamúria das cordas içando água misteriosa. Minha boca doce de criança estranhava o frescor e a ferrugem das canecas de lata.
Estranhava o cheiro de macela mofada dos travesseiros, o violão de meu avô (que nunca era tocado), a creolina (que ele usava para tudo, inclusive para tratar hemorróidas), e suas excentricidades culinárias , como doces temperados com alho!
O cheiro de quinquilharias vindo do porão, cogitava a presença de aranhas de mil pernas peludas e as teias só confirmavam a possibilidade. Na sala de jantar com o odiado chá-com-leite entre as mãos (que era obrigada a tomar) , não conseguia tirar os olhos de uma tosca pintura que retratava os caminhos do bem e do mal.
O do bem mostrava a obstinação da família de fiéis diante do íngreme caminho, desembocando num paraíso azul celeste e dourado. E o do mal? Um frenesi pincelado de vermelho: danças, taças de champagne, mulheres com luvas negras, gargalhadas, tudo terminando nas labaredas do inferno. Tinha medo do inferno, pois aquele baile me fascinava. O medo e o chá-com-leite abandonado na xícara enchiam-me de náuseas. Tinha medo do meu bisavô que era de veneta. Mas não havia medo que me afastasse do pomar de goiabeiras. Nada conseguia afugentar as crianças das árvores. Nem seus guardiões: taturanas de veludo negro, mandruvás espinhudos; nem mesmo o bisavô brandindo o facão nas mãos e jurando cortar os dedos de quem colhesse goiabas verdes.
A casca prematura amarrava a boca, mas a polpa doce e os carocinhos, soltavam os nós. E o medo nesse caso abria o apetite.
Dia ensolarado, acima de qualquer suspeita. Na varanda aguçávamos os ouvidos procurando a buzina do sorveteiro. O bisavô surge com uma assadeira exalando à carne assada.
_ “Prova, prova”. A mais velha, esperta,deu no pé. Pegamos um pedacinho de carne.
_”Gostou? É coelho”. Não, não gostamos; não sei se por ser coelho ou por estar queimada.
Que coelho é esse? Cogitavam os adultos.
A origem misteriosa do assado, foi revelada pelas goiabeiras. Trepando em seus galhos mais altos, a cata das bitelas , minha irmã descobriu a pele de nosso gato desaparecido: arreganhada e esturricada em cima do telhado.
Como se não bastasse cozinhar o nosso gato, que foi atropelado (descobrimos depois) e nos servir, num arroubo taxidermista , o velho costurou a pele e a recheou com jornal. Criou uma aberração dura, com buracos sinistros no lugar das órbitas, com a qual nos perseguia.
Profanou assim, não o só corpo de nosso animalzinho, mas a sua memória e a nossa inocência.
Gosto de fel, temperado com maldade e loucura.
O bisavô teve tempo de sobra para outras, pois se foi (sabe-se lá pra onde!) aos 104 anos.
De resto, até hoje não como coelhos , odeio chá-com-leite, adoro goiabas e bichanos. E para não arriscar, não provo churrasquinhos...

domingo, 13 de janeiro de 2008

Liberdade!


Tive anos de alma e paladar enferrujados. Faculdade: comida de bandejão.
Ideologias engolidas sem deleite, acompanhadas de salsichas, miojos, café solúvel e conhaques marvados. Mas, saberes e sabores mancos não saciam. E vontades não reveladas causam lombrigas.
No meu clã comemorávamos quando um restaurante de status era interditado (a inquisição teve uma reedição no final do século passado), comemorávamos cheios de inveja, disfarçada de fervor revolucionário.
Voyers amaldiçoando as festas de Babete, para as quais nunca éramos convidados. Afinal, quem convida chatos não-ilustres e não-familares? Nossa chatice era maior que a distorcida religiosidade dos convivas do filme e a nossa concepção de beleza e prazer, aprisionada pelo cego espartilho ideológico. Fosse música, literatura, hobbies, até comida, tudo passava por um crivo político,pretensamente onisciente.
Finalmente percebi que minha alma, assim como meu paladar, não estão confinados à classes, castas ou clubes.
Emergi com o desespero dos afogados!Busquei não só o ar que me faltava, mas todos os gostos; os que já conhecia e os que me atiçavam. Voracidade pantagruélica foi precisa, a fome de mundo despertou furiosamente. Excesso e descomedimento:efeitos colaterais da liberdade recém conquistada. Mas, a fome da hibernação vêm cedendo lugar a sedução mensurável de textura, cor, forma, cheiro, sabores livres.
Estendo minha língua, tapete nobre para os convidados. Alguns dóceis, outros exatos no ponto de amargura, incandescentes e insossos também, pois às vezes careço de pausa.
Quando posso, o corpo inteiro viaja e quando não, a língua leva corpo e alma, em buscado dos sabores sabidos!

quinta-feira, 10 de janeiro de 2008

Sopa de Leopardo


Essa memória recorta do tempo um punhado de carinho fraterno.
Adorávamos brincar de comidinha. Comestível ou não. Nossos bolinhos de areia eram finamente decorados com tatuzinhos-de-jardim (que invariavelmente arreganhavam-se todos na hora do parabéns à você).
Lá em casa sobremesas não eram fatos, precisavam de merecimento, ou melhor de provações: conseguir sobreviver a todos os pratos que detestávamos! Especialmente às torturas líquidas- fumegantes: sopas que ocultavam terríveis legumes (que hoje adoro). Tudo temperado fartamente com lição de moral:
_ Há muitas crianças que não tem um pedaço de pão-velho para comer. ´
Frase tão antiga quanto o mundo. Infelizmente ainda é verdadeira, e infelizmente isso não aplaca a miséria do mundo... Só enche os pratos de culpa, erva maldita e maligna!
Fosse fruta trivial ou manjar dos deuses (no caso, o de coco mesmo), o ritual era esse.
Primogênitos em geral são extremos: ou chutam o pau da barraca rebelando-se contra tudo, ou guardam o pau da barraca com suas próprias vidas, aperfeiçoando as regras paternas.
Minha irmã mais velha pertencia ao segundo gênero. Quando ganhávamos ou desviávamos alguma iguaria da cozinha, ela reclamava seus direitos de nascimento, controlando os víveres e as irmãs mais novas. Antes de comermos a banana amassada, paçoquinhas, fosse o que fosse, tínhamos de tomar a temida “Sopa de Leopardo”. Preparada por ela com esmero: água da torneira servida em pratos fundos, tomada à infindáveis colheradas.
Às vezes fingíamos que não gostávamos ( o que realmente era verdade, quando tínhamos que repetir o prato) e outras que adorávamos cada colherada daquela água fria com gosto metálico.
Que sopa divina! Gosto pungente de raríssimos Leopardos invisíveis, encharcados com molho de risadas. Perfeição! Perfeição é sentimento, assim como receita de família.
Beijos! Obrigada pelas boas-vindas!

quarta-feira, 9 de janeiro de 2008

Pastelzinho de Belém

Minha lição de casa da matéria Educação para o Sabor, ministrada pelo fantástico professor Luiz Fernando Escouto, era uma degustação comentada. O meu desafio: aguçar minhas papilas gustativas, perceber sutilezas. Ei-lá:

Pastelzinho de Belém que deve ser chamado pastel de nata. De Belém, só os de Belém mesmo, os fabricados na antiga “oficina do Segredo”.
Mas estou cansada dessa história, daqui a pouco, acarajé só da Bahia, aos demais restará o nome genérico: bolinhos de feijão fradinho. Então o meu brasileiro é de Belém e acabou!
Na verdade estou realmente cansada, por isso essa rabugentice descontada no doce.
Confesso, esse não é o primeiro pastelzinho que compro para fins educacionais.
As outras tentativas fracassaram. Na primeira a glutonice foi mais forte, comi já na saída da padaria, na rua mesmo. Fome e o sussurro quente de dentro do saquinho: devora-me....
Senti-me muito mal em comer o dever de casa sem o ritual proposto.
Para segundo, cuidei de todos os detalhes, com o esmero que dedicamos aos encontros com amores novos. Silêncio e toalha limpa. Enfim sós, eu e o portuguesinho. Contato visual, depois olhos fechados para o perfume. Telefone. Era minha sogra, e talvez pelo teor do monólogo, quando dei por mim, meu dedo engordurado empurrava convulsivamente os últimos pedaços de massa quebradiça, boca adentro.
Essa é a terceira tentativa. Estou com medo de não sentir nada do proposto, por isso estou tagarelando feita louca .
Esquentei-o no forno. Começo mal: queimo levemente o nariz, num afã de aspirar e codificar os odores secretos. Cheiro doce. Mas isso não é muito... tento especificar: cheiro de doce antigo: açúcar queimado, ovos... leite. Se há baunilha, não sei dizer.
As formas: as bordas da massa folheada desabrochando, páginas de um onírico livrinho circular.
É, de fato, o pastel de Belém não é um modelo de beleza convencional. Se olhar mos as partes separadamente, ele é bem feio. O recheio assustado, encolhido no centro. Mas no conjunto sim, é belo. Como a Sofia Loren, traços desproporcionais reunidos, formando um rosto singular e magnífico.
Exageros á parte, a massa acastanhada requer devoção aos deuses: Saturno e Vulcano, pois é preciso dominar o fogo e o tempo.
O recheio degradê, vai do amarelo pastel ao austero marrom de suas manchas aleatórias. Impressão digital que os faz únicos. Pensando nisso, as tortas de morangos me parecem bobas.
Pequena dentada: texturas distintas. Cremosidade do recheio, tenras folhas próximas ao centro, até a resistência das paredes externas.
O doce impera os primeiros instantes, mas logo é deposto pela neutralidade da massa.
Amálgama de sabores. Minhas papilas gustativas não sabem mais nada.
Rendo-me. Outro dia arranco mais confissões desse dissimulado e gostoso português, que se foi e deixou um gosto de óleo na boca!

Rendas, ouro líquido e pérolas

Tabu pessoal desde sempre: ovos moles somente com arroz, nunca com feijão. Com feijão as gemas devem estar firmes e amarelo pálido. E isso já é outra memória, que não essa:Arroz com ovos! (que falávamos ôvos).
Três meninas com seus pratinhos forrados de perolazinhas de arroz , aguardando ovo quentinho. _Mãe, quero o meu com rendinhas! – seguidos de: _ eu também, eu também! Minha mãe soberana, ordenava e o óleo quente obedecia: retorcia as bordas da clara, tecia rendas fartas e estaladiças, coroas de filigrana. Clara de seda branca, circundando o frágil epicentro de ouro líquido.
Eis então, a erupção provocada pela ponta do garfo, a incandescência do magma dourado soterrando as pérolas barrocas. O gosto? É de nobreza, princesas que éramos.

Memórias Gustativas

Condensar as memórias dos meus sabores. Difícil tarefa! A palavra condensar evoca lata de leite condensado, lambida à exaustão, língua e dedos obstinados sob a ameaça das farpas metálicas.
Selecionar as memórias mais marcantes, escolher a dedo...
Escolher... E lá vou eu novamente, túnel do tempo: vulcões de feijão crú na mesa de fórmica, meus dedinhos escolhendo o destino de favas, carunchos e pedras.
Obviamente o feijão desperta o arroz ! O aroma do refogado de cebola e óleo, o protesto do arroz por ser jogado na panela quente : chiiiiiiii; anunciações do fim das brincadeiras lá fora, antecipando o cheiro de sabonete que viria em seguida.
Leite-com-café tomado na mamadeira rosa, exalando cheiro de plástico novo, é minha memória mais antiga. Rito de passagem: leite dos pequenos e café dos mais crescidos.
Gosto híbrido: conforto do leite e o café impelindo-me ao mundo que se apresentava.
Sinapses de comida e sentimento fervilham meu cérebro. E de repente é urgente falar dos temperos de ambos. E se eu como o mundo, sou esse mundo e por ele sou devorada, são inúmeros os relatos antropofágicos.
Mas já que o objetivo é degustar algumas memórias e não se empanturrar com uma enciclopédia, marchando: algumas delas.

segunda-feira, 7 de janeiro de 2008

Perdão chuchu!

Ao chuchu sempre coube o meu desprezo. Sequer o consolo da repugnância, que ao menos define senão as coisas, os sentimentos. Quase uma pessoinha boa, mas chata! Confesso: às vezes prefiro os malvados aos chatos, pela pura razão de não saber lidar com os segundos sem sentir-me invadida ou corróida por remorsos. Os maus mobilizam-me: revidar, odiar e quiçá vingar. Já os chatos... Não consigo odiá-los em paz, ignorar as insistências telefônicas, ou simplesmente esconder-me atrás de postes e árvores, sem sentir cheiro de culpa e enxofre; ou ainda enxergar nas nuvens, seus rostos magoados. Era assim com o chuchu. Tão diferente do fígado, que odeio e ponto! Já comi desavisada e achei que a carne estava estragada. Certeza libertadora. Mas voltando ao chuchu, nunca me acostumei com o líquido rompido, destoando de sua textura. Nem aos apelos: _ é gostoso, não tem o gosto do chuchu. Ora, para que comer algo sem sentir? Deprimente como falta de tesão!
Sem contar as investidas dos consultores organizacionais que comparam as pessoas a chuchus e pimentões: "o que você quer ser? alguém que deixa sua marca ou absorve tudo ao seu redor? Pobre chuchu e nesse caso também, pobre pimentão e pessoas.
Segui tranqüila minha vida sem sentimentos viscerais ao chuchu.
Até que um dia, minha sogra (sim, minha sogra) apresentou-me ralado com coentro: sem sorrisos, mas convicta: "_ Parece camarão"! Não achei. Como pode parecer camarão?
Mas, confesso: nesse dia fui tocada! Fiz raladinho, punhadinhos de outras ervas (mas nunca movida por pretensões alquímicas de transmutar chuchu em camarões...).
Até que um dia, vindo sei lá de onde , uma imperiosa vontade de comer suflê de chuchu me deixou insana (juro: nada de larica!) .Aventurei-me... Vozes do passado sussurravam algo como lavar em água corrente para não manchar as mãos. Não sabia o que fazer com aquela parte branca (ainda não sei).
Sei exatamente o momento em que a paixão eclodiu: quando misturei o estranho creme verde (não fica uniforme quando processado) ao bechamel e seda nova surgiu! Colherada boca a dentro, cru ainda. O suflê a despeito de tudo que já ouvi, cresceu lindo ao som de rock distorcido do meu radinho e ignorou minha vigília isana na porta do forno.
Minhas papilas gustativas acordaram para essa nova experiência. Reconheci a sutil dirença entre suavidade e sem-gracice. Aquele verde-criancinha não foi deixado de lado nas brincadeiras do queijo e ovos: reinou!
Veredito: sim, eu gooooosto muito! Todo do problema era a textura.
Ação: pela graça concedida espalhar "santinhos digitais". E para começar bem o ano:
Perdão chuchu! Obrigada Dona Jacy!
Em breve, as peripécias de Chuchu e Eu. (E não é que lembrei-me que o meu primeiro beijo foi com um tal de Chuchu?!)