_ Alô, Lili?
_Sim. Quem fala?
_ Muito prazer. Sou o
celular, quero dizer, o representante dos aparelhos celulares e...
_ Obrigada, não estou
interessada! Aliás, meu número está bloqueado para telemarketing, você não
deveria estar me ligando...
_ Não, por favor, não
desligue. Não estou vendendo nada. Quero que escreva um texto em nossa defesa.
Um manifesto que traduza nossa vergonha cotidiana. Vergonha alheia, mas
vergonha!
_Quem realmente está falando?
_ O celular, quero dizer sou
uma entidade.
_ONG?Sindicato?
_Não, não. Entidade quase
espiritual, digamos.
Chequei o rótulo do vinho, nenhuma
menção à: “pode conter traços de ácido lisérgico”, desliguei. Não resisti,
atendi, estava mesmo querendo xingar alguém desde cedo, e eis que um candidato
se apresentou.
_ Por favor, dê-me apenas
alguns minutos de sua atenção. Eu falo em nome dos aparelhos de telefone
celular, sim, nós temos uma organização. Conversamos entre nós, os aparelhos.
Afinal a nossa essência é comunicação. E a nossa situação é pra lá de desesperadora.
Inexplicavelmente a essa
altura já aceitava o fato de estar conversando com um celular. Sanidade saiu
cedendo lugar ao medo: o mundo dominado por computadores malignos, chicoteando humanos
com cabos USB. Prestes a atirar meu
aparelho na parede e sair aos berros pela rua.
_Fique tranqüila, não se
trata de ameaça dos computadores. Você vê ficção demais. O papo aqui é
realidade, concretude.
_Desculpe, Seu celular.
_ Aparelhos belos, delicados, a mercê de
berros, exibicionismos, obrigados a fotografarem tudo até a exaustão: de bifes a
role, à cenas de sexo. Vítimas é o que somos,
vítimas.
Agora mesmo o meu humano
está me usando com a boca cheia e no viva voz. Uma
criança fofinha engordura meu amigo com dedos de batata frita. Horror,
horror... Falo com você todo cuspido de mousse, acho que é de cambuci.
Fisgou-me: cambuci!Frutinha
em forma de disco voador, que não perde o verde: de vez é verde escuro, madura,
é verde claro. Essa sim, injustiçada. Deu nome ao bairro paulistano pela sua
abundância e quase foi extinta. Conheci cambuci na infância em suco adoçado por
vó. E de repente um questionamento
existencial: por que nunca tive vontade de cambuci? Ah, mas agora queria
alucinadamente o sabor e saber da fruta esquecida.
_ Blá, blá... Somos chamados
de mal necessário, de vício, de extensão do corpo humano. Ora somos objetos de
desejo, ora de repúdio. Muitos param de funcionar de vez, suicidam-se. Juro que se
esse cara arrotar mais uma vez na minha tela.. ai que vergonha!Acho que vai
sair briga: o cara da mesa ao lado já lançou o dardo: “dá para abaixar o volume dessa m...de
celular?” Tá vendo, é disso que eu estou falando...
_ Calma, você sabe se a
mousse de cambuci tem leite condensado?
_ Espera aí, o monstro tirou
uma foto do cardápio. Hum...não diz, mas descreve a fruta. Rico em vitamina C, sob
risco de extinção, perfume. Nossa! A danada parece um disco voador! Nome
indígena, referência ao formato de jarros de cerâmica e...
_E?
_ Acho que vou vomitar. O
casal agora vai bater uma foto, daquela que os carões felizes ficam deformados.
_ Não, não, calma. Eu te
ajudo, prometo.
_ Jura? Você já disse no
post Marmitas concretas e nada fez...
_Eu sei. Desculpe-me, sofro
de procrastinação.
_Intestinal?
_ Deixa pra lá. Vou escrever
sobre os dissabores sofridos pelos celulares e alguns humanos simpatizantes, pode
ser? É que ando um tanto deprimida e o assunto abala minha fé na humanidade...
_Tá...Tem o Festival gastronômico:
A Rota do Cambuci. São Paulo e diversos municípios,Resgate da fruta, apoio aos
pequenos produtores. Ano passado foi em março.
_Acha que a mousse tem
claras ou gelatina? Creme de leite? Cream cheese?
_Aguardamos seu texto. Mais
uma coisa: seu celular é um ancião, expô-lo a quedas constantes não é nada bom!
_ Mas isso não é falta de
educação.
_Não, é relaxo mesmo. Boa
noite.
Com a lucidez distante do
espírito, urrei no quintal a minha frustração por não ter nenhum cambucizinho
para testar com leite de coco, que esse eu tinha. Com a boca cheia d’água
esperando o festival desse ano, desliguei o celular, com um beijinho só para
garantir.
(O cambuci é um dos produtos
brasileiros da Arca do Gosto do movimento Slow Food, para saber mais acesse: www.slowfoodbrasil.com/arca-do-gosto)
2 comentários:
É a primeira vez que entro no seu blog e tenho que dizer que gostei bastante, divertido! E caso queira meu palpite: na mousse de cambuci uso creme de leite e leite condensado! :) Adoraria receber sua visita e opinião em meu pequeno blog: http://mariamestrecuca.wordpress.com/ Abs, Maria Sônia.
Oi Lili. Que saudades...Você tem um jeito especial para escrever e informar. Eu nem sabia que cambuci é uma fruta. Beijos Joelma
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