sexta-feira, 26 de outubro de 2012

A mulher e a galinha ou a vigilância dos prazeres



A mesa estava posta com toalha verdadeira. Cheirosa e com provas indubitáveis do fracasso do  tira-manchas: um quê de tintas descuidadas de café e vinho , sumo de frutas e auréolas de gordura.
A mulher trazia a travessa com a expectativa de encontro amoroso, daqueles bem sexuais, com lingerie selecionada, corpo amaciado com esfoliantes e óleos perfumados, desejando percepção de quem desfrutasse. No caso não era seu corpo, mas o do frango orgânico e caro, que resplandecia temperos alquímicos das Índias e da horta apertada que brigava por uma réstia de sol com horário marcado para aparecer na vidraça.
Esfregou a galinácea com as cores em pó de vermelho preponderante, quebrou cristais de sal grosso com esferas de pimenta negra. Quis pó de pirlimpimpim: noz moscada ralada no ato.  Sem hesitar lanhou em ralinho diminuto a bolinha fugidia. Era sempre assim, a noz simplesmente desvencilhava-se dos dedos e ralo, mergulhava na marinada ou na água e sabão da pia. Era um jogo de pega-pega entre a noz e a mulher.  A amêndoa fazia tipo antes de inebriar o mundo com perfume extasiástico.
Ela conheceu a galinha ainda com penas ciscando liberdade.  Apontou com dedo e dose de culpa o destino de panela. De pedra sabão comprada no cartão que esperou ansiosamente a fatura fechar. Queria curar a panela com milagre rápido, mas sabia o punhado de paciência e uso que utensílio clama.
A galinha merecia respeito. Aquele que as pobres dispostas em isopores em gôndolas frias não recebem.  Quis homenagear a penosa. Ornamentou com colar de cebolas pérola. Não havia mais tempo para a mulher se preparar como planejou: banho, roupa limpa e maquiagem. Jogou água fria no rosto que não foi o bastante dissolver a gordura. Mas a mulher não esmoreceu: batom de quase vermelho, de quase tempero.
Uma varinha de canela entrou no caldo borbulhante, desejos de feitiço: os comensais a cada garfada seriam tocados.
O cozimento lento da carne dura despertaria do transe urbano, dissolveria tensões.
O tomilho não teria sido ceifado em vão: revigoraria ânimos.
Proibiu celulares ao lado dos talheres. Desligou a chave geral. Acendeu velas que tinha, de aniversários passados, as guardadas para o natal e até uma de Santo Expedito.
Em respeito à galinha vetou assuntos de mortes, doenças e contendas.
Decretou felicidade e desconforto. A galinha foi sorvida em silêncio. Ninguém relatou seu dia ou compartilhou sonhos.
O silêncio foi rompido:
_ Tem sobremesa, mãe?
E a festa se fez: barulho de sorvete-servido-sorvido aos toletes em copos de requeijão e colheres de sopa.  A família que era agora soltou o ar. Som de risadas e da TV encheram a casa. Das discussões também.
A mulher diante das louças para lavar pensou em cortar os pulsos, mas acendeu um cigarro.
Tirou a teima, provou um naco da coxa. E se dou conta: estava carregada de responsabilidade!
Desdenhou o sorvete, mas inocentou a galinha, o vinho e a cozinheira.
Absolveu mais vinho.
E sápida soube que os temperos são voláteis, nem sempre resistem a potes politicamente corretos. Sob vigilância amargam ou insossam.


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